Criações
DUPLA
DUPLA é uma criação de Ana Vitorino & Carlos Costa, em coprodução com o Teatro Municipal de Vila Real e tem estreia marcada para a noite de 31 de outubro de 2025, noite de Halloween! De propósito? Claro que sim, em DUPLA não há coincidências e em Vila Real também não.
Em 1860, pouco depois da sua eleição como Presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln relatou ter visto o seu duplo no espelho, uma versão pálida e exausta de si mesmo, parada mesmo ao lado do seu reflexo real. Em 2022, uma mulher na Alemanha procurou online uma doppelgänger, que depois assassinou e desfigurou, assim simulando a sua própria morte para tentar começar uma vida nova.
O que é um doppelgänger? O termo – que designa alguém que replica a aparência física de uma pessoa viva, não lhe sendo relacionada por sangue - foi cunhado por um romancista alemão no final do séc. XVIII. Mas o tema da duplicação do humano é muito anterior, atravessando os séculos numa pluralidade de crenças, folclores, histórias, canções, ilustrações e superstições. Na Arte, o doppelgänger é presença assídua – em “O Estudante de Praga” e a “A dupla vida de Véronique” (no Cinema), em “O Duplo” de Dostoiévski, “O Outro” de Jorge Luís Borges e, claro, “O homem duplicado” de Saramago (na Literatura), em Rossetti e Magritte (na Pintura), e em tantos e tantos outros exemplos.
Quem é o doppelgänger? Um estranho que partilha o nosso aspeto físico como resultado acidental da relativa estreiteza da nossa diversidade genética? Uma duplicação de nós mesmos, para nela podermos ver quem somos ou podermos projetar as sombras que escondemos? Uma versão de mim noutro ponto do espaço ou do tempo, noutra realidade, num universo paralelo? Uma imagem do que eu poderia ser hoje, se tivesse escolhido outro caminho? No conceito cabe tudo isto e mais, pois nele encontramos a fascinante convivência entre reconhecimento e desconhecimento, a tensão que Otto Rank e Sigmund Freud descreveriam em ensaios que marcaram a Psicanálise: tensão entre a familiaridade, que nos toca e nos acalma, e a estranheza, que nos enche de cautela e medo. Ambas sedutoras e perigosas… à sua maneira.
No seu mais recente livro, intitulado precisamente “Doppelgänger”, Naomi Klein – autora, ativista e analista política – fala-nos do “mundo-espelho”. Um mundo onde aqueles que defendem ideologias totalmente estranhas às nossas podem exprimir-se com a mesma linguagem que nós, gritar os mesmos slogans e, com isso, chegarem a parecer iguais a nós. Um mundo onde nos inscrevemos no espaço digital e apresentamos nas redes sociais pessoas a quem damos o nosso nome, a nossa cara, a nossa (aparente) identidade, seres extremamente parecidos connosco… mas que mostram vidas radicalmente diferentes das nossas vidas reais.
Podemos talvez dizer que “Doppelgänger” é o espelho de uma identidade – individual ou coletiva - que se fragmenta, que se encontra em dúvida, que se questiona, que se reconhece naquilo que era suposto ser “o estranho”, que não sabe como (re)definir-se. “Doppelgänger” é assim, sobretudo, um terreno fértil para pensar e falar do “eu”, do “outro”, do “nós”.
No momento em que caíam as torres gémeas, o VU preparava e ensaiava um espetáculo paradigmático no seu percurso e que, pela primeira vez, colocava em cena personagens que, apesar de cumprirem funções dramatúrgicas pré-definidas, não deixavam de duplicar a personalidade dos intérpretes; e nessa tarde, numa breve pausa para lanchar, julgámos que o impacto do segundo avião contra a segunda torre se tratava da repetição do impacto anterior.
Ao longo dos anos fomos enchendo guiões para cena que apontavam ações e textos de ANA e CARLOS - assim mesmo, sem a preocupação de definir uma alteridade clara - que mais não eram do que apontamentos para duplos de nós próprios. Esta metodologia teve, mais tarde, momentos de particular duplicação, de que destacamos Teoria 5S (2017) e Velocidade de Escape (2018), em que nos assumimos como parte de um coletivo que procura dar sentido ao seu percurso e arquivo; trans/missão (2015), quando Carlos Costa se assume como um dramaturgo que tenta auxiliar um músico (João Martins, colaborador e autor habitual) a criar uma ópera; Biodegradáveis (2014), com Ana Vitorino assumindo uma outra Ana, com a mesma idade e uma doença degenerativa; Versão Beta (2021), com Carlos Costa a mergulhar numa dramaturgia da sua própria vida; Little B (2019) com ambos a encontrarem-se na biografia de Mário Moutinho.
Entretanto, ao longo deste percurso, o conceito de “doppelgänger”, acima apresentado, passou diversas vezes pelo jogo da escrita: criando um alegado filme pretérito, sem som, em que nos tentávamos reconhecer e até dobrar as próprias vozes (Teoria 5S); depois com o convite a um dos fundadores do VU para imaginar a morte da Ana e do Carlos, como princípio do processo de trabalho (Velocidade de Escape); mais recentemente, com a criação de uma personagem (posteriormente descartada) em busca de uma teoria geral dos doppelgängers (Tang Ping, 2022); e já a seguir, na consideração das tensões entre obra e biografia de um mesmo artista (Como desenhar uma filha nua, 2024).
E - agora sim, finalmente sim - chegou o momento de arriscarmos um espetáculo em torno desta ideia que em nós vive há mais de 20 anos. Ou que vive em duplos nossos.
(imagem: Dante Gabriel Rossetti: How they met themselves)